sexta-feira, 22 de julho de 2022

LIBERDADE E RESISTÊNCIA EM CECÍLIA MEIRELES - sobre o sonho e a realidade

 

LIBERDADE E RESISTÊNCIA EM CECÍLIA MEIRELES

sobre o sonho e a realidade

Liberdade e resistência em Cecília Meireles

 

Antônio Cândido, em A vida ao rés-do-chão considera a crônica um gênero menor, o que a deixa mais perto da realidade do leitor, ajustando-se à sensibilidade do dia-a-dia. Em sua despretensão, humaniza e é essa humanização que lhe confere certa profundidade de significado. A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas ou das pessoas. É amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas e diretas (CÂNDIDO, 1992: 13-14).  São vários os significados da palavra crônica.

 

Todos, porém, implicam na noção de tempo, presente no próprio termo que procede do grego chronos. Arrigucci chama nossa atenção para esse vínculo de origem que liga o texto a um registro de vida, a um fato histórico que pode não ser percebido pelo leitor, mas que está sempre presente na crônica (ARRIGUCCI, 1979: 51). Ao nos propormos, então, a refletir sobre crônicas que determinados autores escreveram, é importante situarmos no tempo e no espaço as circunstâncias que provocaram aquelas palavras. Caso contrário, a crônica perde o sentido e passa a ser entendida com base em experiências próprias do leitor, numa compreensão muitas vezes distante de seu objetivo principal.

 

Cecília Meireles passou a maior parte de sua vida diante de uma máquina de escrever. Embora seja mais conhecida por sua obra em verso, a “pastora das nuvens” que fala da transitoriedade da vida, do efêmero e do subjetivo em suas poesias mostra outra face em sua numerosa obra em prosa. De 1920 a 1964, quando sua última crônica foi publicada na Folha de S.Paulo, a escritora escreveu cerca de 2.500 crônicas. Sua estréia na redação de um jornal se deu em 1930, década marcada pela transição de duas grandes guerras e, no Brasil, pela revolução de outubro.

 

Na imprensa pipocavam jornais de adesão ao novo regime. Assim surgiu o "Diário de Notícias", em junho de 1930. Mais do que um simples matutino, o jornal trazia uma seção diária dedicada à educação e à política, a "Página de Educação", cuja diretora era Cecília Meireles. Jornalista liberal, crítica, engajada, partidária incansável das liberdades individuais, lutava pela instauração de uma república democrática, bem diferente daquela regida pelo populismo autoritário do regime que se descortinava após a revolução. Acreditava na liberdade e na criatividade contra a opressão e a massificação da educação.

 

Os acontecimentos da época eram tratados por Cecília em suas crônicas pois, como nos aponta Massaud Moisés, o cronista sente realmente o que exprime. As crônicas em geral são breves e seu estilo direto, espontâneo e jornalístico, reagindo de imediato ao acontecimento (MOISÉS, 1982: 104). As idéias e críticas de Cecília, no entanto, foram recebidas com resistência e perseguições por motivos ideológicos, políticos e estéticos. Era partidária dos princípios da Escola Nova, a escola moderna do filósofo norte-americano John Dewey e assistiu à ascensão de um estado autoritário e de uma Igreja Católica que tentava recuperar seu poder após quarenta anos de uma república laica, com ares positivistas. Se a história da literatura desconhece a Cecília Meireles da luta política, desconhece também a que sofreu perseguições da censura de Vargas, dos católicos e em concursos literários.

 

A "Página de Educação" se encerrou para Cecília em janeiro de 1933, quando se cansou das manobras políticas do governo e o estado da educação no Rio de Janeiro. Chega mesmo a manifestar em sua correspondência o "horror" que lhe causava o jornalismo em sua vida.  Ficou para trás a jornalista engajada que, entre 1930 e 1933, assinou sua página diária sobre educação - na qual chegou a acusar ο então ministro de educação, Francisco Campos, de medalhão e ο então presidente, Getúlio Vargas, de Sr. Ditador. Foram mais de mil artigos escritos em que Cecília lutava contra a inclusão do ensino religioso e defendia as liberdades, como por exemplo a criação de escolas mistas em que ambos os sexos pudessem dividir ο mesmo espaço. É bom lembrar que isso ocorreu entre 1930 e 1933, quando a mulher sequer exercia ο direito de voto, uma vez que as urnas passaram a contar com ο voto feminino apenas em 1934.

 

Entretanto, logo após sua despedida da "Página de Educação", Cecília Meireles volta aos jornais. Desta vez para o carioca "A Nação", no qual foi contratada com um senão: poderia escrever sobre tudo, menos sobre política!  Durante toda a sua vida a poeta se dedicou ao jornalismo. Na década de 40 escreveu para "A Manhã" uma coluna semanal sobre folclore. Em seguida, na década de 50, de volta ao "Diário de Notícias", ocupava o famoso rodapé de literatura do "Suplemento Literário", pelo qual já tinham passado Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. Terminou sua carreira na imprensa na década de 60, na Folha de São Paulo.

 

Dentre as quase duas mil e quinhentas crônicas que escreveu ao longo de sua vida, escolhemos duas que foram publicadas já em período de maturidade intelectual . “Edmundo, O Céptico” foi publicada em livro pela primeira vez em 1963 junto a textos de outros autores no livro Quadrante 2. “Liberdade”, por sua vez, foi publicada em primeira edição em 1964 no livro Escolha o seu sonho, uma coletânea de quarenta e cinco crônicas com temas variados, as quais foram escritas a pedido do jornalista Murilo Miranda a fim de serem lidas nos programas da Rádio Roquete Pinto.

 

“Edmundo, o Céptico” fala de um menino que não acreditava em nada que os adultos lhe diziam. Era chamado de teimoso mas o que queria era descobrir por sua própria experiência suas próprias verdades. Quebrou os dentes tentando extrair o melzinho do caroço de ameixa, quase se afogou numa pipa d’água, tudo por não acreditar no que os adultos lhe diziam. Fazia perguntas e não se convencia das respostas, dava trabalho na aula de catecismo e na escola. Estava sempre em guarda com os adultos, estragava as festas, shows de mágica não tinham sentido para Edmundo. Não admitia a mentira e morreu cedo.

 

“Liberdade”, por sua vez, trata de uma reflexão em torno da palavra liberdade. Cantada, descrita, sonhada e desejada por todos, é objeto de ditados populares, hinos e poemas. É motivo de vida, de lutas e de morte. Cecília fala de crianças que atiram pedras e soltam papagaios por serem livres, e quebram coisas ou morrem quando o fio encosta nos fios elétricos. Loucos que tentam fugir dos pavilhões através de incêndios e morrem queimados. Há também os que preferem não se arriscar e nem pensam no assunto. Só os sonhadores, as crianças e os loucos partem em busca do que pensam ser liberdade, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos — linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

Não podemos, porém, ler tais crônicas sem perceber nas entrelinhas a Cecília crítica que angariou inimigos em sua militância no jornalismo, que “quebrou os dentes” tentando extrair o “melzinho” que imaginou haver numa educação diferente, criativa, não conforme os padrões tradicionais que o governo de Vargas ditava (os adultos que diziam verdades a Edmundo). A Cecília que convoca o leitor a aprender com a experiência, a buscar a verificação das verdades, a não se conformar com respostas prontas, a ficar sempre em guarda contra o autoritarismo que tenta impor suas verdades. Reconhece a dificuldade de sua luta e, como Edmundo, se cansa da luta política e se afasta por momentos dos jornais, mas continua ativa. Estaria Cecília, como porta-voz de seus leitores, falando de sua experiência como cronista?

 

Como bem nos lembra Roncari, “o cronista é o sujeito que retrata o tempo, canta a imagem do turbilhão que remexe a ordem do mundo e não deixa nada fixo no lugar” (RONCARI, 1985: 14). Como o Edmundo de Cecília, que não por acaso se chama Edmundo (por mais que não gostasse do mundo dos adultos, pertencia a ele, era do mundo, E-d-mundo), o cronista observa o cotidiano com um olhar estranho, alguém capaz de observar e julgar o movimento, a mudança, e alertar para o que tem de extraordinário, o que parece corriqueiro, sólido e estabelecido. O cronista seria, para Cecília, um “Edmundo” em busca de sentido, de verdades, de movimento? Roncari vê o cronista como o “sobrevivente que de um porto seguro e dificilmente alcançado observa a torrente que a tudo desestabiliza e turbilhona” (RONCARI, 1985: 15) e chama a atenção de todos ao seu redor para que tentem se salvar. Pena que o próprio Edmundo não se salvou.

 

A incredulidade de Edmundo contrasta com a credulidade de quem não questiona, que se deixa levar pelo encantamento mágico das palavras, que acredita em ilusões criadas pelo mundo dos adultos. Um Edmundo que precisou morrer cedo por não admitir a mentira. Estragava tudo, incomodava, como Cecília, apontando o engano por trás de decisões políticas envolvendo a educação.

 

É nesse ponto que buscamos nossa segunda crônica escolhida: “Liberdade”. Escrita também em anos de maturidade com um refinamento em suas palavras, evoca em hinos e poemas os ideais de liberdade, ideais revolucionários como sempre foram sua marca. Revolucionários como Edmundo. As criaturas nutridas de liberdade, como todos nós leitores, cantam, amam e morrem por ela.

 

Cecília dialoga com ditados populares, hinos e gritos de levante popular que, “em certo instante” podem brilhar em nossa consciência como possibilidade e como realidade. Repudia a condição de “autômato e teleguiado” e proclama o “triunfo luminoso do espírito”. O coração e a cabeça juntos, consciência da responsabilidade do ser humano sobre seu próprio caminho. O sonho da liberdade, no entanto, encontra barreiras e tropeços.

 

A infância, para Cecília, deve ser respeitada. O sonho infantil leva pedras e papagaios até onde a realidade não nos permite ir. A realidade, porém, é dura, crua e fatal. Nos restam a infância ou a loucura (ou os dois) como possibilidade de ruptura das correntes e busca da tão desejada liberdade, mesmo que para isso tenha que se enfrentar o risco e a morte. O comodismo e a estagnação nos fazem acreditar no discurso que Edmundo repudiava. O sonho de Edmundo, das crianças, dos loucos, de Cecília e de todos que ousam desafiar a “eles” (lembrando que “eles” eram os adultos de Edmundo e os políticos de Cecília) desnuda a fragilidade e a incoerência que nos deixa pendurados nos “andaimes dos construtores de Babel”.

 

 

 

Bibliografia

 

 

ARRIGUCCI JR., D., Enigma e comentário, Companhia das Letras, São Pulo:, 1987.

AZEVEDO FILHO, L.A. de, 1927. Cecília Meireles, In: Poetas do Modernismo: Antologia crítica. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 81-118.

CÂNDIDO, A., A vida ao rés-do-chão. In: Cândido et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil., UNICAMP, Campinas, 1992.

DAMASCENO, Darci. Cecília Meireles: um cinqüentenário. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 23 mar. 1969, p. 2

LAMEGO, Valéria. A farpa na lira. Rio de Janeiro: Record. 1996.

MEIRELES, C. Liberdade, In.: Escolha o seu sonho, Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 7.

____________. Edmundo, o Céptico, In.: Quadrante 2, Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pág. 122.

MOISÉS, M., A criação literária, 10a. ed., Cultrix, São Paulo:, 1982.

RONCARI, L., A estampa rotativa na crônica literária. In: Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, vol. 46, jan./dez., 1985, p. 9-16.



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